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Sobre esculturas e sobre pinturas

Texto de Paulo Gallina

 

Na mais recente produção da artista plástica Cecília Walton entendemos a importância da pintura na construção do olhar contemporâneo. Tratando a imagem como um registro abstrato a ser construído pelo observador, Cecília passou a operar com suas obras com insinuações que remontam a história da arte brasileira. Hora, se a formação da identidade nacional presente atravessou a manifestação plástica da Semana de Arte Moderna em São Paulo. a produção da artista paulistana pede ao seu observador que lembre-se daquelas imagens. Com essa atitude simples, ela empodera os sujeitos que projetam toda sorte de vontades e dizeres que nunca são realmente ditos sobre as imagens insinuadas.

 

As esculturas apresentadas nesta exposição, são centrais na construção desta compreensão. Porque se as pinturas são criadoras de imagens mentais, as esculturas são a materialização deste universo impossível. Qual é a matéria dos sonhos? Certamente é a mesma matéria capaz de construir sobre um pano ou tela a imagem do paraíso ou o inferno. Pigmento e emulsão são a matéria dos sonhos? Não, é o olhar. O olhar que se apropria das manchas de cores, entendendo-as enquanto imagens coerentes e não uma simulação impossível.

 

Nesta materialização fugidia da escultura Cecília Walton remonta a desconstrução dos mecanismos de compreensão. Pois não se enganem, aqui estamos diante de trabalhos que procuram a comunicação profunda entre os sujeitos e seus mecanismos de aproximação da arte contemporânea. A desconstrução das imagens ganha portanto caráter urgente, assim como foi na década de 10 do século XX. Ou acreditamos realmente ser uma coincidência o Nú descendo a escada de Marcel Duchamp ser datado de 1912? O tempo não é cíclico. Como poderia ser? Mas isso não quer dizer que questões prementes no passado que nos formou, foram completamente resolvidas no presente em que habitamos.

Por entre as hachuras

Texto de Mário Gioia

Entre 1967 e 1968, Mel Ramsden produziu em Nova York Pintura secreta, obra na qual escreve: “O conteúdo dessa pintura é invisível; a natureza e as dimensões do conteúdo devem ser mantidas permanentemente em segredo, conhecidas apenas do artista”. O texto acompanha um quadrado negro. Tal trabalho tornou-se bastante emblemático da arte conceitual e, visto agora, quase 50 anos depois, seu papel de ‘matriz’ propicia vislumbrar um outro momento da contemporaneidade, em sua chave visual. E a obra da paulistana Cecilia Walton atesta tanto a multiplicidade, o caráter móvel e permeável, quanto um forte acento poético com os quais esses agentes da visualidade hoje manejam cotidianamente e que, pouco a pouco, seguem construindo os próprios trajetos.

 

A obra de Walton trata com habilidade elementos herdados desse ‘conceitualismo’ e, em dias atuais muito diversos daqueles em que tais formulações foram desenvolvidas, consegue recontextualizá-los e sedimentá-los, por variados procedimentos, nesses tempos conhecidos em teorias como líquidos, híbridos e multifacetados - talvez como nunca ocorrera antes. Assim, a artista une ideia e concretude, espírito e matéria, transitoriedade e permanência, silêncio e ruído, ilusão e certeza, entre outros vetores.

 

Na série Redução de cor, em especial nas peças Caixas de paisagem, um episódio pode ser destacado. Para a individual Unidades em deslocamento, realizada em 2015 na Pinacoteca Universitária de Maceió, vinculada à Ufal, os quadros com pigmentos emoldurados (e que estavam dispostos mais abaixo na composição) reagiram ao trânsito e ao deslocamento. Explodiram em cores, difundindo de modo informe sobre a superfície interna do vidro um cromatismo menos domesticado e mais irregular, dando novas tintas (literalmente) a uma leitura esboçada a priori. Walton tem experiência e sabia que isso poderia acontecer, mas o vislumbre do conjunto quase que ganhando uma vida própria trouxe à tona e com potência uma centelha enfaticamente ativa.

 

Portanto, se anteriormente a artista utilizara o material corriqueiro e que está à mão no ateliê para, por meio de outras conexões e circunstâncias, provocar novos sentidos e configurar algo que lida com as noções de memória, do fazer e do funcional, depois do evento Walton deparou-se com uma instabilidade almejada, mas completamente fora da planificação e do programa traçados. Uma espécie de presente inesperado e, ao mesmo tempo, combustível para alguém que esculpe o contemporâneo na labuta diária.

 

Em Coleção de raios, coleção de nuvens, coleção de estrelas, a artista parece revisitar o legado conceitual de Ramsden e colegas, mas com uma abordagem menos cerebral e rígida, e nem por isso a desprezar o componente da ideia. A instalação de mobiliário simples e severo convida a quem abrir as gavetas projetar a sua ‘coleção’ imagética de raios, nuvens e estrelas que possui (e é particular). A autonomia do público é provocada, mas não se fecha a enunciados e proposições cerradas em excesso.

 

Nessa linha, a série Figura e fundo também é paradigmática. Nela, Walton constroi delicadamente e com destreza peças entre o bidimensional e o objeto, também com as matérias-primas de ateliê, fazendo com que chassis, molduras, papeis passe-partout, placas e rolos, entre vários outras, se transformem em criações de significados múltiplos. Tanto em Figura e fundo como em Mediações e Objetos ativos, Walton recolhe o legado construtivo nacional, pedra basilar em nossa história da arte, mas recontextualiza-o, retorcendo-o e levando-o aos seus limites, porém com suavidade, fazendo com que se origine um outro recorte, uma nova constituição (e que pode transmutar-se de maneiras indeterminadas e vívidas). É como se um Willys de Castro (1926-1988) viesse a parar numa SP muito diferente da que vivera e, por exemplo, fosse apresentado a um tridimensional mais áspero e ligado à aridez material da urbe de agora.

 

E Walton consegue embaralhar as pré-determinações dos antigos suportes. Território é uma escultura que evoca a conflagração espacial dos grandes aglomerados urbanos, a transparecer não apenas nas ruínas que pontuam boa parte do tecido da cidade, mas, em especial, na tensão que a sustenta e é fulcral nas relações que dão liga à nova peça. O dado vestigial e da história é

importante, já que esses quadros são extraídos da produção anterior da artista, em especial a pictórica. Interessante perceber como Walton joga com registros diversificados, pois, em outro tridimensional da mesma fase, Ossatura aparente, há mais ironia, com a feitura de uma pirâmide de chassis (desta vez limpos). Eles terminam por criar um protomonumento, ou um constructo de grandiosidade abortada, como que a não sustentar a ambição idealmente transferida a ele durante a concepção. Assim, desdobrando anteriores questões da atividade de gravadora e pintora, Cecilia Walton reforça, sem estridências e paulatinamente, um trajeto movediço, algo rizomático, e que cada vez mais se aproxima do essencial.

 

In between hatching

Between 1967 and 1968, Mel Ramsden conceived “Secret Painting” in New York, a masterpiece in which he quotes: “The content of this painting is invisible; the character and dimension of the content are to be kept permanently secret, known only to the artist”. Next to the text is a black square. Such work has become quite emblematic of conceptual art, seen now, almost fifty years later, its ''matrix'' role allows us to envisage another contemporaneity moment in its visual character. The work by Cecilia Walton, an artist from São Paulo, attests both the multiplicity, the movable and permeable scope as well as a strong poetic accent with which these current visual agents cope with on a daily basis and that, little by little, keep on constructing their own paths.

 

Walton´s artwork skillfully regards inherited elements from this “conceptualism” and in today´s time very diverse from those from which the formulations were devised, she gets to contextualize and sediment through varied procedures which are in theory known as liquids, hybrids and multifaceted – perhaps through ways never thought before. Hence, the artist gathers idea and concritude, spirit and matter, transiency and permanency, silence and uproar, illusion and assurance, among other vectors.

 

In the series “Redução de Cor”, specially in the works “Caixas de Paisagem”, a fact can be highlighted. For the individual exposition “Unidades em Deslocamento”, held in 2015 at the “Pinacoteca Universitária de Maceió”, joined to Ufal, the pictures with framed pigments and which were disposed down under in the composition reacted to the movement of the transportation. They burst into colors, shapelessly scattering a less regular and even more unsteady chromatism on the glass internal surface, thus producing new inks, literally to an interpretation drafted in advance. Walton has great expertise and was aware that event could take place, but the glimmer of the set gaining its own life brought into spotlight a flicker potentially and emphatically active.

 

Therefore, if the artist had made use of readily available and close at hand material to spur new senses and set up something dealing with the memory notions, the idea of its making and functional, through other connections and circumstances, after this event Walton came across a desired instability; even though it was out of foreseeable plan. Sort of an unexpected event, and at the same time, stamina for someone who sculpts the contemporaneum in her daily work.

 

In “Coleção de raios, coleção de nuvens, coleção de estrelas”, the artist seems to revisit the conceptual heritage by Ramsden and his colleagues, although showing a less thoughtful and rigid approach, but not in any way despising the components of the idea. The installation of simple furnishings invites those who open the drawers to project their imaginary “collection” of rays, clouds and stars that the work in itself contains. The public autonomy is induced, but does not sum up to enunciations and propositions in excess.

 

Following this trend, the series “Figura e Fundo” is also paradigmatic. In it, Walton delicately and ingeniously conceives pieces that comprise the bidimensional and the object by using her atelier raw materials, molding chassis, frames, passe-partout paper sheets, plates,rolls, among many others, into multiple meaning creations. Both in “Figura e Fundo” as well as in “Mediações” and “Objetos ativos”, Walton gathers the national constructive legacy, building block in our art history, and recontextualizes it by softly retwisting and pushing it to the limits, allowing another cutout to emerge, a wholly new constituted element (and that can evolve into uncertain and lively ways). It´s as Willys de Castro (1926-1988) came to live in a very different SP from which he had lived in and, for instance, were presented to a more crude tridimensional object linked with the material aridity of today´s town.

 

And Walton can scramble the predetermined role of the original supports. “Território” is a sculpture which calls out the spatial conflagration of the huge urban spaces, visible not only in the ruins that are strewn along most of the city, but specially in the tension which sustains it, being essential in the relations that connect to the new piece. The city remnants and historical data are important, once these new pictures are drawn out from the artist´s earlier production, specially the pictorial one. It's interesting to perceive how Walton plays with varied registrations, because in “Ossatura aparente”, another tridimensional work from this same phase, there is more irony conveyed, with the making of a chassis pyramid. The works end up generating a protomonument or an aborted grandiose construction so as not to sustain the ambition ideally transferred to it during conception.

Consequently, unfolding prior questions from her work as an engraver and painter, Cecilia Walton reinforces,discreely and slowly, a movable trajetory and that has each time approached the essential.

UP – PROJETO UM PARALELO, Galeria Orlando Lemos

Texto de Wagner Nardy

O trabalho de Cecília fala essencialmente sobre memória. Não aquela coletiva, imagética, mas de uma memória pessoal, íntima, construída. Sua produção estabelece uma ausência formal para ativar diálogos cognitivos profundos entre a consciencia da obra e a obra de arte conceitualmente constituida.

A artista parte sempre do silêncio e da impossibilidade para discutir a força da arte enquanto experiencia e acontecimento real concreto a assim busca investigar a repercussão de tal fenômeno na construção de uma identidade cultural própria.

 

A utilização de objetos cotidianos, comumente associados as funções de registro, vem justamente demonstrar o apagamento da representação dos mesmos enquanto instrumento permanecendo outrossim a preservação de sua ideia enquanto ação.

Cabe neste ponto citar a poesia de Olga Savary, grande poetisa brasileira, cujos versos encontram afinidade com a poética de Walton: “Vejo teu rosto / Refletido no profundo fundo de um poço / E da memória não me interessa nada mais que isto”.

 

Cecília transita com singular elegância entre os legados da arte conceitual somando outros proprios paradigmas propositais a discussão das questões ligadas ao pertencimento na contemporaneidade. Retira da obra de arte sua regular construção. Esvazia-lhe de seu reconhecivel enquadramento positivo para reconstrui-la de maneira subjetiva no campo ideologico onde as possibilidades de leitura se tornam por isso mesmo ilimitadas, pessoais e comoventes.

Em um diletante exercicio, a transgresão no uso dos materiais e o tensionamento na redução de recursos artisticos a arriscados limites mínimos aparecem como temas recorrentes em seu repertório e é onde o domínio técnico se mostra extremamente afiado.

Estabelece-se assim, sempre a dúvida prevalecendo a interpretação do dilema em beneficio das idéias inevitavelmente levantadas na obra de Walton e através da qual constantemente o público é desafiado a encontrar-se consigo mesmo e a questionar neste processo temas amplamente linearizados na história da arte bem como seu próprio posicionamento no mundo.

Por fim, é como se tudo sempre estivesse ali. E de repente, não está mais. Assim como é próprio do tempo. Assim como é próprio da vida.

Obras de Ficção, Arte Hall

Texto de Juliana Monachesi

Você acredita nas imagens? Confia naquilo que seus olhos vêem? Quanto tempo costuma dedicar a elas: a cada uma das fotografias,ilustrações, figuras e símbolos que invadem seu cotidiano violentamente, por todos os lados – no celular, na TV, nas embalagens, nos jornais e revistas, no e-mail, na timeline das redes sociais, nos livros, nos museus, nas ruas, nas lojas, no elevador, na sala de espera de qualquer lugar? Dois segundos? Cinco ou dez, se aparentar ser algo interessante? Quanto tempo dura uma imagem? Quanto vale? Quanto (e quando) serve? Quando (ou quanto) significa? Na presente exposição, Alejandro Lloret, Cecilia Walton, Dudu Malzone, Gabriel Nehemy e Leka Mendes convidam a um olhar detido sobre imagens ambíguas e enigmáticas que resistem à observação apressada. Não se entregam de maneira instantânea, nem tampouco de uma única vez.

 

São da ordem da convivência: imagens para conviver, que revelam novos sentidos a cada encontro. São como obras de ficção. Em um livro de não-ficção, espera-se encontrar a realidade descrita fidedignamente. Porém, como se sabe, qualquer enquadramento do real é enganoso, por ser sempre um ponto de vista. Construído. Fabricado. Já na literatura ficcional, o leitor sabe estar diante de um mundo imaginário; espera encontrar ali uma narrativa que não corresponde a pessoas ou situações reais; mas, como dizia Virginia Woolf, “é mais provável que a ficção contenha mais verdade do que o fato”. Fabricando realidades inexistentes, o artista chega mais perto do real. E assim ocorre com as imagens de Obras de Ficção.

As obras de Cecilia nos convidam a olhar além do quadro. Ou mais profundamente dentro dele. Um “chassi” em forma de trapézio; uma tela rasgada da qual restam apenas as bordas, prenhes de informação; o linho esticado – para receber a sagrada intervenção do artista – distorcido, assimétrico, deixando metade do “espaço ideal da pintura” vazado, vazio, vago. Um convite, sobretudo, a vagar pela exposição de forma mais crítica. Quanto tempo dura uma imagem? Quanto vale? Quanto (e quando) serve? Quando (ou quanto) significa? Elas significam na medida em que lhes emprestamos significados. Não são paisagens, nem abstrações ou arte conceitual estes objetos que nos vemos nesta coletiva. Não apenas. São obras de ficção onde é mais provável que encontremos a verdade, que nos olha de volta.

 

 

 

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